A discussão a respeito da legalização do aborto é polêmica e envolve pressões políticas, religiosas e, sobretudo, morais. Em tempo de eleições, o debate se mostra acalorado e, decerto, necessário.
Não pretendo, aqui, expor dados sobre a situação do aborto no Brasil – todos nós já sabemos que os números são altos e até alarmantes. O ponto que pretendo enfocar é simples: Até onde vai a legitimidade de tais números para embasar uma decisão legislativa?
O primeiro argumento adotado pelos defensores da legalização do aborto é a contraproducência da lei que o proíbe. Enxerga-se, nesta vertente, uma ótica utilitarista, eu diria; afinal, defendem que, se se legalizasse o aborto, sua prática se reduziria. Para isto, toma-se como exemplo a resolução de alguns estados americanos, os quais permitiram o aborto sob a observância de certos critérios.
Sucintamente, 1) a mãe deveria passar pelo acompanhamento de um assistente social, que lhe apontaria outros caminhos, como a disposição do filho à adoção. Se ainda assim ela resistisse em manter a gravidez, deveria, portanto, 2) ser levada a um psicólogo, que lhe mostraria os efeitos de sua decisão. Entretanto, se ainda assim a gestante se mostrasse firme em optar pelo aborto, deveria 3) ser encaminhada a um hospital público que, com segurança, realizaria o procedimento.
Segundo os defensores desta tese, a gestante, previamente disposta a adotar, desistiria na primeira ou segunda etapa, o que levaria à diminuição das taxas de aborto nos estados adotantes de tal prática.
A lógica (de John Stuart Mill) desta linha de pensamento parece evidente, afastando-se dos discursos religiosos que usualmente norteiam o problema. Antes mesmo de verificar a aplicabilidade de tais medidas no Brasil (atualmente impossíveis, em minha opinião, face à deficiência do Sistema Único de Saúde), chamo atenção para o viés filosófico – e, por que não, moral – da questão.
O ponto é: Até onde se pode permitir a abordagem meramente numérica? Seguindo esta vertente, podemos deduzir que também contraproducentes são as leis contra a pirataria, e nem por isto se pode, num Estado democrático de Direito, atentar contra a propriedade intelectual.
O argumento de contraproducência da lei nos leva, em última análise, a conseqüências ridículas. Reductio ad absurdum: Será que se pode descriminalizar o homicídio só porque a taxa de assassinatos é alta?
Deixo, portanto, minha posição: a frieza dos números não basta para regular o Direito – e, principalmente, a vida. Nada pode ser, estou certa, analisado sob a égide da pura “razão”.
5 comentários:
Olá, Mari. Quanto tempo?!
Não pude deixar de ler essa sua postagem sobre tema tão polêmico. Achei muito interessante sua argumentação, até certo ponto:
"Será que se pode descriminalizar o homicídio só porque a taxa de assassinatos é alta?"
São coisas completamente diferentes, evidentemente. No caso do homicídio é uma lei que proíbe tirar a vida humana já íntegra. É totalmente adequada ao que vivemos em sociedade, tanto constitucionalmente quanto pelos direitos humanos. Essa lei é válida, real! Já o aborto não! Pois, partindo do presuposto que só há vida após o fim da gestação e o início da consciência, esta lei só atrapalha aos países que ainda se aprisionam na moral. Logo, essa lei é incoveniente e não tem mais nenhuma funcionalidade, a não ser pela moral religiosa que ainda impregna a nossa sociedade. Defendo que, se é uma prática comum, deve ser repensada sua vinculação à lei, pois o Direito não é absoluto! É uma discussão muito próxima a das drogas. A proibição alicia o tráfico e gera uma sequência de erros... Enfim, não há comparação entre isso tudo e o homicídio. Porquê? Vamos lá:
Nos país mais ricos do hemisfério norte, é comum a prática do aborto. Você vai lá numa clinica e nada te impede de tirar aquilo como se fosse qualquer pedaço de carne. Agora aqui não! e em outros países do mundo, principalmente os envoltos com a religião, e falhando com a laicidade.
Fato é que famílias carentes só aumentam o bolsão de pobreza, se multiplicando aos montes. Alguns podem dizer que há métodos anti-conceptivos, ora, pois o aborto é só mais um deles.
Veja, não estou fazendo associação com o país ser rico por causa do aborto. Mas, exatamente onde se há grana para ter uma grande família, como na Noruega e Suécia, por exemplo, é que se pode fazer o aborto. Enquanto que em vários países latinos e africanos isso é total ou parcialmente proibido. Qual a lógica nisso?
Só mesmo a da moral, nesse caso num sentido negativo.
Portanto, não é sob o égide da razão pura que se trata esse assunto, mas muito mais sobre o da saúde pública. Se milhares de mulheres morrem ou sofrem danos por tentar abortos ilegais td ano, gerando mais e mais gastos públicos, porque não se legalizar de vez isso e fazer do jeito mais precavido? Porque é moralmente errado? Mas o que é moral nesse caso se não um monte de preconceitos ou atitudes proíbidas por uma grande maioria, atingida pela religião?
Assunto interessante, intrigante... Difícil.
Beijos, milady
Descriminalizar o homicídio não diminui (least harm, de acordo com Stuart Mill) a taxa de assassinatos.
Descriminalizar o aborto se encontra numa situação diametralmente oposta, pois há evidência empírica esmagadora que o número de abortos diminuiu e o número de mortes resultantes de abortos diminuiu. Abortos e riscos à saúde física e mental que são pontualmente classistas, pois a mulher rica aborta quando dizer. Os números, empíricos, tratam de um número avançado de mortes, o que é suficiente pela razão e pela empatia.
As leis contra pirataria não são contra-producentes de forma equiparável à situação do aborto. A comparação só segue se a descriminalização da pirataria reduzir a própria pirataria ou suscitasse um aumento ou diminuição das proteções das liberdades individuais.
A vida não é fator suficiente, tendo em vista que gametas estão vivos, nosso próprio material genético está vivo e o próprio feto anencéfalo está vivo e pode ser morto. Entrasse numa regressão infinita, num paradoxo de sorites, quando se tenta definir num termo polissêmico o fenômeno da vida. Dentro da biologia, a vida começou há 4 bilhões de anos. Essa é a definição mais objetiva sobre a vida. É no mínimo complicado afirmar que a vida começa com a concepção. Tanto o óvulo como o espermatozoide já eram vivos antes de se unirem. O que daria para dizer é que a fusão dos gametas marca a criação da identidade genética do que poderá tornar-se um ser humano, se as condições ambientais ajudarem. Uma semente não é uma árvore e não recebe do Ibama o mesmo nível de proteção que uma respeitável tora de mogno. O que a concepção produz é um ser humano em potência, para utilizar a distinção aristotélica, autor tão caro à igreja. E não faz muito sentido embaralhar potencialidades com atualidades; afinal, no longo prazo somos todos cadáveres.
Muito bom sua exposição das contradições que trazem a tese.
Milady, aonde você vai parar, hein? Agora resolveu falar sobre o aborto e, com eloquência, conseguiu criticar quase que elogiando a racionalidade que se apresenta em torno de um tema que, pra mim, resume-se ao puro e simples instinto humano de autopreservação. Revogar a lei e permitir que a mãe decida, ao seu alvedrio, se deve abortar ou não é imoral?
Mas o que há de moral na mantença de uma lei cuja inobservância traz consequencias ainda mais danosas?
Ah...quer saber? chega de pensar nisso...alguém aí nos comparou a uma tora de mogno e é exatamente isso que se consegue com tanto debate sobre esse assunto: a diminuição da nossa humanidade.
Milady, porque você não posta algo sobre futebol? a futilidade do assunto o torna mais agradável aos incrédulos como eu.
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